Direito Penal

Juiz sem nome, sem lenço e sem documento

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Por Thais Rego e Igor Leone

O Tribunal de Santa Catarina inovou. Criou os chamados “juízes anônimos” para o julgamento de pessoas acusadas de integrarem organizações criminosas, sem que sejam minimamente identificados. Os magistrados não terão nome, não terão face, em absoluta afronta à própria ideia de Justiça em uma sociedade democrática.

Nem Franz Kafka, em O Processo, imaginou tamanha distopia. Se, para um leigo, o sistema processual já é indecifrável, com suas regras, ritos e linguagem própria, com os juízes secretos atingimos um novo patamar do delírio burocrático: a eliminação de todo e qualquer rastro de humanidade; não se saberá sequer quem é o julgador.

A justificativa: resguardar a integridade de magistrados designados para casos sensíveis — especialmente os ligados à criminalidade organizada —, e, para isso, a solução dissolve a transparência, esvazia a responsabilidade e subtrai do cidadão um dos pilares do devido processo legal: a identificação daquele que julga, que decide com imparcialidade.

O juiz, que deveria ser um sujeito plenamente identificado pela função pública que exerce, converte-se, nesse modelo, numa figura espectral, sem nome, sem rosto, sem identidade, é apenas “O Juiz”.

A Constituição de 1988 garante uma série de direitos fundamentais. Entre eles, o de que ninguém pode ser julgado por alguém sem autoridade para isso, nem perder a liberdade ou seus bens sem passar por um processo legítimo. Ela também diz, como regra, que os julgamentos são públicos e só podem ser sigilosos quando estiver em jogo a intimidade das pessoas ou o interesse da sociedade. Além disso, a lei exige que os juízes, identificados, fundamentem os motivos de suas decisões.

Diante disso, fica a pergunta: como esses direitos podem ser respeitados se as decisões forem tomadas por juízes secretos, escondidos pelo próprio Estado? Como confiar na Justiça quando ela se apresenta como uma figura sem rosto, sem nome, protegida por uma ideia nebulosa chamada “segurança institucional”?

Não se trata de desprezar os riscos concretos enfrentados por juízes em determinados contextos — realidade que deve ser enfrentada e combatida com veemência inteligência. No entanto, o remédio encontrado pelo sistema de Justiça catarinense parece ignorar que a integridade do julgador não pode ser assegurada às custas da integridade do julgamento.

O anonimato judicial — seja qual for a justificativa invocada — é uma concessão grave ao arbítrio. Flerta com a lógica dos tribunais de exceção, vedados expressamente pela Constituição. Mais do que isso: desafia frontalmente os valores republicanos ao instaurar uma zona obscura onde deveria reinar a luz do controle social, da legalidade e da legitimidade.

É um precedente grave pela inversão de valores: a toga, símbolo da imparcialidade, torna-se capa protetora para o esconderijo de magistrados e de suas decisões. Um juiz que não suporta a luz do escrutínio público e ônus que a profissão lhes dá, não serve como julgador. É preciso coragem institucional.

Para além disso e a bem da verdade é um reconhecimento tácito da incapacidade do Estado de gerir a sociedade de forma transparente e, por isso, ele se esconde. É um verdadeiro paradoxo: ao tentar proteger alguns dos seus, o Estado mina a própria legitimidade. É dizer: ao se encobrir, propaga sua fraqueza e coloca em xeque sua idoneidade.

E nesse ângulo, o juiz anônimo se revela uma anomalia jurídica e democrática. Sua existência corrói silenciosamente os fundamentos da Justiça, transforma o processo penal em sombra, tritura o direito de defesa, empobrece o debate jurídico e anestesia a consciência coletiva diante da erosão paulatina das liberdades. Então, quando a Justiça precisa se esconder, é sinal de que a barbárie já começou a espiar por entre as frestas.

Vale refletir que quando o anonimato invade o Poder Judiciário, já não se trata apenas de proteger o julgador. Trata-se de proteger um sistema inteiro do próprio colapso ético e de suas fraquezas.

Ainda, não se pode ignorar que sob o manto do anonimato estará toda e qualquer decisão judicial, para o bem ou para mal…

Rememore-se, então, que há muito se noticia que organizações criminosas preparam seus integrantes para comporem, inclusive, o Poder Judiciário, que agora avança para uma estrutura que legitima o juiz sem nome, de rosto e voz distorcidos, num ambiente virtual.

Por outro lado, essa blindagem tecnológica, com a elitização do anonimato estatal, será também estendida à base do sistema penal? Os policiais que estão na “linha de frente” terão seus rostos distorcidos e nomes ocultados? E quanto aos agentes penitenciários, que convivem com presos faccionados, também terão suas identidades borradas e sua voz modificada? Na engrenagem do sistema, esses são os descartáveis. Importa mesmo é o Juiz.

Giovanni Falcone, Juiz morto pela máfia italiana em razão de sua atuação que desmantelou a Cosa Nostra, mesmo sabendo de todos os riscos que corria, dizia que “quem cala e abaixa a cabeça morre toda vez que o faz, quem fala e anda de cabeça erguida morre apenas uma vez” e que “o importante não é ter medo ou não, mas sim saber conviver com o medo e não deixar que ele dite a sua vida. Isso é coragem; caso contrário, não é mais coragem, mas sim imprudência”.

A medida vinda de um Estado contra grupos organizados para o cometimento de crimes deveria ser a forte estruturação das forças públicas num combate legítimo. Mostrar a cara, não a esconder.

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