O crescimento do setor de apostas esportivas geralmente provoca um debate que começa com o “jogo responsável” e avança para questões penais quando há indícios de manipulação de resultados, fraudes contra consumidores e movimentação atípica de valores. É fundamental, em apurações de grande destaque, definir com precisão onde a infração disciplinar no esporte se encerra e onde se inicia o crime, para que não se façam acusações imprecisas e responsabilizações desprovidas de fundamento probatório.
A experiência recente tem mostrado que vários casos se originam de indícios pontuais, conversas entre jogadores, mudanças incomuns nas odds, movimentações financeiras estranhas e assim por diante, que ganham contornos por meio de investigações, buscas e apreensões, quebras de sigilo e compartilhamento de dados. Esses procedimentos investigativos exigem uma atenção especial à prova digital e à cadeia de custódia prevista no art. 158-A do Código de Processo Penal (CPP): logs, mensagens, metadados e trilhas de transação só sustentam acusações quando coletados, preservados e analisados de forma rastreável, com método e respeito aos parâmetros definidos em lei.
Delimitar responsabilidades individuais é outro ponto sensível, já que atletas, dirigentes, agentes, executivos de empresas vinculadas ao ecossistema e influenciadores que participam da divulgação do produto ocupam posições jurídicas distintas, e o desenho das condutas presentes na investigação precisa refletir essas diferenças. A passagem da disciplina desportiva e a infração a seus preceitos para o Direito Penal não pode ser automática, dependendo da demonstração concreta de dolo, de nexo entre as condutas e o resultado pretendido e, sobretudo, de prova idônea que supere a mera conjectura.
Aqui, a construção da defesa costuma começar antes mesmo de qualquer denúncia. O respeito às garantias processuais, como presunção de inocência, direito ao silêncio, ampla defesa e contraditório, não é apenas teoria, sendo a base prática que orienta decisões nas primeiras 48 horas de caso, quando escolhas sobre versões, cooperação e estratégia podem definir o rumo do processo. Nessas horas, também ganha relevância a discussão sobre nulidades decorrentes de vícios na coleta, no armazenamento ou na cadeia de custódia do material apreendido, especialmente quando a narrativa investigativa se baseia em conteúdo de aplicativos de mensagem e registros de plataformas.
Sobre essa questão, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu continuidade ao julgamento do Tema de Repercussão Geral 1.185, que trata da obrigatoriedade de informar o preso, desde a abordagem policial, sobre o direito ao silêncio, sob pena de tornar a prova ilícita. O processo, que está em julgamento, está na fase de realização de sustentações orais, e em breve deve contar com uma decisão.
Às vezes, a via negocial também deve ser analisada, para celebração, por exemplo, do Acordo de Não Persecução Penal previsto no art. 28-A do CPP; de outro lado, em certos casos, é necessário lidar com o mérito da questão por meio de relatórios técnicos, perícias em equipamentos digitais, recriações do contexto dos fatos e tentativa de reconstrução da intenção do autor no momento da prática da conduta – e tudo isso de maneira objetiva, sem que a gravidade social do fenômeno ou eventual repercussão midiática prevaleça sobre o rigor jurídico que é essencial para uma investigação, processamento e, se o caso, condenação.
Apostas quase sempre andam de mãos dadas com uma grande exposição na mídia, especialmente quando se trata de casos que as envolvem. A defesa responsável deve unir a técnica processual com uma gestão cuidadosa da comunicação – afinal, decisões sem embasamento jurídico, ainda que tomadas com boa intenção, elevam riscos e tornam mais complexas as soluções posteriores.
A finalidade é simples de ser formulada e rigorosa em sua aplicação: garantir que na apuração dos fatos, abusos não sejam cometidos, assegurando-se que o que chega ao juiz seja uma prova válida, contextualizada e suficiente para a conclusão do caso.